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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A Beleza e a Verdade de Cristo





Por Joseph Ratzinger

Por um lado, a arte cristã deve opor-se ao culto da feiúra, que diz que tudo o que é belo é uma ilusão; por outro, deve contrapor-se à beleza fraudulenta, que faz com que o ser humano se rebaixe ao invés de fazê-lo grande.


A VERDADE DE CRISTO: O HOMEM DAS DORES, BELO DENTRE OS HOMENS
Todos os anos, na Liturgia das Horas prevista para o Tempo da Quaresma, volto a assombrar-me com um paradoxo presente nas vésperas da segunda-feira da Segunda Semana do Saltério. Aqui, lado a lado, estão duas antífonas, uma para o Tempo da Quaresma, a outra para a Semana Santa. Ambas reproduzem o Salmo 44 [45], mas apresentam interpretações surpreendentemente contraditórias. O salmo descreve o casamento do rei, a sua beleza, as suas virtudes, a sua missão, e volta-se a seguir para a exaltação da sua esposa. No Tempo da Quaresma, o Salmo 44 vem emoldurado pela mesma antífona usada no restante do ano. O terceiro verso do salmo diz: Tu és o mais belo dentro os filhos dos homens, e a graça é derramada sobre os teus lábios.
Naturalmente, a Igreja vê nesse salmo uma representação poético-profética da relação esponsal de Cristo com a sua Igreja. Ela reconhece Cristo como o mais belo dentre os homens, e a graça derramada sobre os seus lábios aponta para a beleza intrínseca das suas palavras, a glória da sua pregação. Assim, não é meramente a beleza externa da aparência do Redentor que é glorificada; antes, transparece nele a própria beleza da Verdade, a beleza do próprio Deus que nos atrai a si e ao mesmo tempo nos captura pela ferida do Amor, a santa paixão (eros) que nos permite seguir adiante juntos – com e na Igreja, a sua Esposa – para encontrar o Amor que nos chama.
Na segunda-feira da Semana Santa, porém, a Igreja modifica essa antífona e nos convida a interpretar o Salmo à luz de Isaías 53, 2: Não há nele nenhuma formosura, nenhuma majestade, nada que atraia os olhares, nenhuma graça que nos agrade. Como podemos reconciliar uma coisa com a outra? A aparência do mais belo dentro os filhos dos homens está tão desfigurada que ninguém deseja olhá-lo. Pilatos apresentou-o à multidão dizendo: “Eis o homem”, para suscitar a simpatia deles pelo Homem esmagado e espancado, no qual não havia mais nenhuma beleza exterior.

DUAS TROMBETAS DO MESMO ESPÍRITO
Agostinho, que na sua juventude escreveu um livro sobre A beleza e o harmônico [De pulchro et apto] e que apreciava a beleza nas palavras, na música, nas artes figurativas, tinha uma aguda consciência desse paradoxo. Descobriu que, sob essa perspectiva, a grande filosofia grega sobre a beleza não era pura e simplesmente rejeitada, mas ao menos tinha de ser posta em dúvida dramaticamente; era preciso rediscutir e tornar a submeter-se às questões sobre o que vinha a se o belo, o que significava a beleza?
Referindo-se ao paradoxo contido nos textos que mencionamos, falava do toque contrastante de “duas trombetas”, mas produzido por um mesmo sopro, um mesmo Espírito. Sabia que um paradoxo significa contraste, não contradição. Ambas os versículos vêm do mesmo Espírito que inspira toda a Escritura, mas toca notas diferentes nela. É deste modo que ele nos põe diante da totalidade da verdadeira Beleza, da própria Verdade.
Em primeiro lugar, o texto de Isaías levantava uma questão que interessou os Padres da Igreja: se Cristo era ou não belo. Está implícita aqui a questão mais radical de saber se a beleza é verdadeira, ou se pelo contrário é a feiúra o que nos leva à verdade mais profunda da realidade. Quem quer que creia em Deus, no Deus que se manifestou precisamente na aparência desfigurada de Cristo crucificado como amor até o fim (Jo 13, 1), sabe que beleza é verdade e verdade, beleza; mas em Cristo sofredor também aprende que a beleza da verdade acolhe igualmente a ofensa, a dor e mesmo o sombrio mistério da morte, e que ela só pode ser encontrada quando se aceita o sofrimento, não quando se procura ignorá-lo.

PLATÃO MOSTRA QUE A BELEZA TRAZ CONSIGO A DOR DO DESCONTENTAMENTO
Sem dúvida, a consciência de que a beleza tem algo a ver com a dor já estava presente no mundo grego. A título de exemplo, vejamos o Fedro de Platão. Platão contempla o encontro com a beleza como o choque emocional salutar que faz o homem sair da sua concha e acende o seu “entusiasmo”, atraindo-o para algo que é diferente dele mesmo – o outro. O homem, diz Platão, perdeu a perfeição original que havia sido concebida para ele. Agora está perpetuamente à procura da primitiva forma que o curaria. A nostalgia e a ânsia impelem-no a continuar essa busca; a beleza impede que se contente apenas com o dia-a-dia, fá-lo sofrer. Num sentido platônico, poderíamos dizer que a flecha da nostalgia penetra o homem, fere-o e desta forma dá-lhe asas, eleva-o em direção ao transcendente. No seu discurso no Banquete, Aristófanes afirma que os amantes não sabem o que realmente querem um do outro. A busca por algo que é mais do que o seu prazer torna evidente que as almas de ambos têm sede de alguma coisa que vai além da fruição amorosa. Mas o coração não pode expressar essa “outra” coisa, “só tem uma vaga idéia do que ele realmente quer e pondera-o como um enigma”.

NICOLAU CABASILAS: A FERIDA DA BELEZA DA ESPOSA
No século XIV, no livro A vida em Cristo do teólogo bizantino Nicolau Cabasilas, redescobrimos essa experiência de Platão em que o objeto último da nostalgia, transformado pela nova experiência cristã, continua a ser algo inominado. Cabasilas diz: “Quando os homens têm uma ânsia tão grande que ultrapassa a natureza humana, quando desejam avidamente e são capazes de empreender coisas que vão além da mente humana, foi o Esposo que os feriu com essa ânsia. Foi Ele que mandou um raio da sua beleza diretamente aos seus olhos. Se a extensão da ferida mostra que a flecha chegou ao seu alvo, a ânsia mostra quem foi que infligiu a ferida” 1.------------------------------------(1) Cf. “A vida em Cristo”, livro II, 15.------------------------------------
O belo fere, mas é exatamente dessa forma que convoca o homem para o seu destino final. Aquilo que disse Platão e, mais de 1.500 anos depois, aquilo que disse Cabasilas não têm nada que ver com um esteticismo superficial ou um irracionalismo, ou com a fuga da clareza e do peso da razão. O belo é certamente conhecimento, mas numa forma superior, já que desperta o homem para a real grandeza da verdade. Aqui, Cabasilas permaneceu totalmente grego, pois atribui o primeiro lugar ao conhecimento quando diz: “Na realidade, é o conhecimento que causa o amor e o gera... Uma vez que esse conhecimento ora é muito amplo e completo, ora imperfeito, segue-se que a poção do amor tem o mesmo efeito” 2.------------------------------------(2) Cf. ibid.------------------------------------
Ele não se contenta em deixar essa afirmação em termos gerais. No seu pensamento tipicamente rigoroso, traça uma distinção entre dois tipos de conhecimento. Um é o conhecimento por instrução, que permanece, por assim dizer, como algo “de segunda mão” e não implica um contato direto com a própria realidade. O outro é aquele que surge através da experiência pessoal, de uma relação direta com a realidade.
[Do primeiro, diz:] “Portanto, não o amamos na medida em que é um digno objeto de amor, e como não percebemos a própria forma, não experimentamos o seu efeito próprio”. Já o verdadeiro conhecimento é ser atingido pela flecha da Beleza que fere o homem, movido pela realidade: “pois é Cristo ele mesmo que está presente e de um modo inefável dispõe e forma as almas dos homens” 3.------------------------------------(3) Cf. ibid.------------------------------------
Ser atingido e dominado pela beleza de Cristo constitui um conhecimento mais real, mais profundo, do que a mera dedução racional. É claro que não devemos subestimar a importância da reflexão teológica, do pensamento teológico exato e preciso; ele continua absolutamente necessário. Mas daí a desdenhar ou rejeitar o impacto produzido pela resposta do coração no encontro com a beleza, considerada como uma autêntica forma de conhecimento, seria empobrecer-nos, ressecar a nossa fé e a nossa teologia. Precisamos redescobrir esse modo de conhecer, e essa é uma necessidade urgente nos nossos dias.

A NECESSIDADE PASTORAL DA ESTÉTICA TEOLÓGICA
Partindo desse conceito, Hans Urs von Balthasar construiu o seu Opus magnum de Estética Teológica. Muitos dos seus detalhes secundários foram acolhidos no trabalho teológico, mas a sua abordagem fundamental, na verdade o elemento essencial de toda a sua obra, não foi tão prontamente acolhido. Obviamente não se trata apenas, nem principalmente, de um problema teológico, mas de um problema da vida pastoral, que precisa encorajar o encontro da pessoa humana com a beleza da fé. Com demasiada freqüência, os argumentos racionais encontram ouvidos surdos porque no nosso mundo muitas afirmações contraditórias competem entre si, a tal ponto que nos lembramos da descrição feita pelos teólogos medievais da razão, que teria “um nariz de cera”: em outras palavras, pode-se apontá-la em qualquer direção se se for suficientemente esperto. Tudo faz sentido, tudo é tão convincente; em quem devemos confiar?

A FLECHA DO BELO PODE GUIAR A MENTE PARA A BELEZA: BACH, RUBLEV
O encontro com o belo pode tornar-se a ferida da flecha que atinge o coração e desta forma abre os nossos olhos, de modo que, mais tarde, possamos tirar dessa experiência os critérios de juízo e avaliemos corretamente os argumentos. Para mim uma experiência inesquecível foi o concerto de Bach que Leonard Bernstein conduziu em Munique depois da súbita morte de Karl Richter. Eu estava sentado ao lado do bispo luterano Hanselmann. Quando a última nota de uma das maiores cantatas de Thomas Kantor se dissipou triunfante, nós nos entreolhamos espontaneamente e dissemos de imediato: “Quem quer que tenha ouvido isso sabe que a fé é verdadeira”.
A música tinha uma força tão extraordinária de realidade que percebemos, não por dedução, mas pelo impacto sobre os nossos corações, que a realidade não podia ter-se originado do nada, que só podia ter chegado a ser pelo poder da Verdade que se tinham tornado real na inspiração do compositor. E a mesma coisa não fica evidente quando deixamos comover pelo ícone da Trindade de Rublev? Na arte dos ícones, como nas grandes pinturas ocidentais do período Gótico e Românico, a experiência descrita por Cabasilas, a começar pela interioridade, é retratada de um modo visível e pode ser compartilhada.
A BELEZA DO ÍCONE: JEJUM DA VISTA
Pavel Evdokimov mostrou de modo muito rico o caminho interior que um ícone estabelece. Um ícone não reproduz simplesmente o que se pode perceber pelos sentidos, mas antes pressupõe, como ele diz, “um jejum da vista”. A percepção interior deve libertar-se da mera impressão sensível e, por meio da oração e do esforço ascético, adquirir uma nova e mais profunda capacidade de ver, de realizar a passagem daquilo que é meramente exterior para as profundezas da realidade; assim, o artista pode ver o que os sentidos em si não podem, o que realmente transparece naquilo que pode ser percebido: o esplendor da glória de Deus, a glória de Deus brilhando na face de Cristo (2 Cor 4, 6).
Admirar os ícones e as grandes obras-primas da arte cristã em geral conduz-nos por um caminho interior, um modo de nos superarmos; nessa purificação do olhar que é uma purificação do coração, revela-se-nos a beleza, ou ao menos um brilho dela. Dessa forma, entramos em contato com o poder da verdade. Muitas vezes afirmei a minha convicção de que a verdadeira apologia da fé cristã, a demonstração mais convincente da sua verdade contra qualquer negação, são os santos e a beleza que a fé gerou. Hoje, para que a fé cresça, devemos levar-nos e às pessoas que conhecemos a um encontro com os santos e a um contato com o belo.
Agora, porém, ainda temos de responder a uma objeção. Já rejeitamos a noção de que o que foi dito constitui um vôo em direção ao irracional, ao mero esteticismo. Na verdade, o oposto é que verdade: esta é exatamente a maneira pela qual a razão se liberta do embotamento e se torna pronta para agir.

A CONTRAFAÇÃO DA BELEZA: FALSIDADE, SEDUÇÃO, MAL
Hoje, outra objeção tem um peso ainda maior: a mensagem da beleza é posta em dúvida inteiramente pelo poder da falsidade, da sedução, da violência e do mal. A beleza pode ser genuína, ou, afinal, é apenas uma ilusão? A realidade não será basicamente má? O medo de que no fim das contas a flecha da beleza não nos leve à verdade, mas de que seja a falsidade, tudo o que é feio e vulgar, o que constitua a verdadeira “realidade”, sempre causou angústia nas pessoas.
Na atualidade, isso foi expresso na afirmação de que, depois de Auschwitz, não seria mais possível escrever poesia; depois de Auschwitz, não seria mais possível falar de um Deus que fosse bom. As pessoas se perguntavam: onde estava Deus quando a câmara de gás estava funcionando? Esta objeção, que parecia bastante razoável já antes de Auschwitz, quando se tomava consciência de todas as atrocidades perpetradas ao longo da história, mostra que um conceito puramente harmônico da beleza não é suficiente. Ele não suportaria o confronto com a gravidade da questão a respeito de Deus, da verdade e da beleza. Apolo, que para o Sócrates de Platão era “o Deus” e o protetor da beleza imaculada como “a verdadeiramente divina”, absolutamente já não basta.

A VERDADEIRA BELEZA DE CRISTO QUE NOS AMA ATÉ O FIM
Voltamos assim às “duas trombetas” de que fala a Bíblia e com as quais começamos esta meditação, ao paradoxo de se poder dizer de Cristo: Tu és o mais belo dentro os filhos dos homens e Não há nele nenhuma formosura, nenhuma majestade, nada que atraia os olhares, nenhuma graça que nos agrade. Na Paixão de Cristo, a estética grega, que merece admiração por ter percebido o contato com o divino, mas não conseguiu exprimi-lo, não é deixada de lado, mas superada.
A experiência do belo recebeu uma nova profundidade e um novo realismo. Aquele que é a própria Beleza deixou que o esbofeteassem no rosto, que cuspissem nEle e o coroassem de espinhos; o Sudário de Turim pode ajudar-nos a imaginá-lo de um modo realista. Entretanto, nesta Face tão desfigurada é que aparece a genuína, a extrema beleza: a beleza do amor que vai até o fim, e que por essa razão se manifesta como maior do que a falsidade e a violência.
Quem quer que tenha percebido essa beleza sabe que a verdade, e não a falsidade, é a real aspiração do mundo. Não é o falso que é o “verdadeiro”, mas sim a Verdade. O falso usa, por assim dizer, o novo truque de se apresentar como “verdade” e de dizer-nos: “além e acima de mim, basicamente não há nada; pare de procurar ou até de amar a verdade; ao fazê-lo, você está no caminho errado”.
O ícone de Cristo crucificado liberta-nos desse engano que está tão difundido nos dias de hoje. Entretanto, impõe-nos uma condição: que nos deixemos ferir por ele e que creiamos no Amor daquele que pôde correr o risco de deixar de lado a sua beleza exterior a fim de proclamar, precisamente desta forma, a verdade do belo.

MANIPULAÇÃO ATRAVÉS DE UMA BELEZA FALSA E ENGANOSA
Mas a falsidade ainda tem outro estratagema: uma beleza que é enganosa e falsa, uma beleza deslumbrante que não tira as pessoas de si mesmas para as abrir ao êxtase de subir às alturas, mas pelo contrário as fecha dentro de si mesmas. Tal beleza não desperta o desejo do Inefável, a prontidão para o sacrifício, o abandono de si, mas ao contrário instiga o desejo, a vontade de poder, de posse e de prazer.
É desse tipo de experiência da beleza que o Gênesis fala na narrativa do pecado original. Eva notou que a fruta da árvore era “bela” para se comer, e que era aprazível aos olhos. O belo, como ela o experimentou, despertou nela um desejo de posse, fazendo-a por assim dizer voltar-se para si mesma. Quem não reconheceria, por exemplo, na publicidade as imagens feitas com extrema habilidade, criadas para tentar irresistivelmente o ser humano, para fazê-lo querer possuir todas as coisas e procurar uma satisfação passageira, ao invés de abrir-se para os outros?

EVITAR O CULTO DO FEIO E O MEDO DO ENGANO COM A BELEZA REDENTORA DE CRISTO NOS SANTOS E NA ARTE CRISTÃ
A arte cristã, hoje, está entre a cruz e a espada (como talvez sempre tenha estado): por um lado, deve opor-se ao culto da feiúra, que diz que tudo o que é belo é uma ilusão e que só a representação do cruel, baixo e vulgar é a verdade, a verdadeira luz do conhecimento. Por outro, deve contrapor-se à beleza fraudulenta, que faz com que o ser humano se rebaixe ao invés de fazê-lo grande, e que por essa razão é falsa.
Existe alguém que não conheça a frase tão citada de Dostoievsky: “O belo nos salvará”? Entretanto, as pessoas normalmente se esquecem de que Dostoievsky se refere aqui à Beleza redentora de Cristo. Precisamos aprender a vê-Lo. Se nós O conhecermos, não apenas nas palavras, mas se formos trespassados pela flecha da sua beleza paradoxal, só então O conheceremos verdadeiramente, e não apenas porque ouvimos outras pessoas falando a seu respeito. E então teremos encontrado a beleza da Verdade, da Verdade que redime. Nada pode pôr-nos em contato tão próximo com a beleza do próprio Cristo como o mundo de beleza criado pela fé e a luz que brilha na face dos santos, através dos quais a própria luz do Senhor se torna visível.
Fonte: Osservatore Romano