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segunda-feira, 20 de abril de 2015

CATOLIZAÇÃO DA MÚSICA EVANGÉLICA OU PROTESTANIZAÇÃO DA MÚSICA CATÓLICA?

Por Francivaldo da S. Sousa (Vavá Silva)
Consagrado na Comunidade Remidos no Senhor


            Para ser honesto, tenho me preocupado com a situação atual da música católica. Já aludi a isto em artigo anterior,[1] ocasião em que expressei minha angústia quanto à imigração dos nossos cantores para gravadoras seculares. Desta vez, porém, a questão é outra. Diz respeito, antes de mais, à infiltração desacanhada da musicalidade protestante no cenário do catolicismo.

            Há algum tempo, ao se ouvir uma música cristã sendo cantada em determinado ambiente (praça, trio-elétrico, igreja), era possível saber facilmente se se tratava de um grupo católico ou evangélico. De um certo período para cá, isso está ficando cada vez mais difícil. Qual a razão disto? Um número significativo de canções gospel sendo gravadas por cantores católicos: Anjos de Resgate, Celina Borges, Padre Marcelo Rossi, Fábio de Melo e Adriana Arydes, são alguns dos que integram essa lista. Esta última, inclusive, gravou recentemente um disco quase inteiro com canções evangélicas. Não só: a produção musical do último CD e DVD ao vivo de Adriana Arydes também foi encabeçada por um protestante.[2]

            Existe algum mal nisso? Em certa medida, não! Todavia, isso levanta algumas questões: a inserção de composições gospel nos Cd’s católicos é motivada por razões meramente comerciais, ecumênicas, ou estaria sinalizando uma crise pela qual passa a nossa música atualmente?

            Se a resposta for a primeira alternativa, significa que não estamos sendo fiéis ao nosso chamado, enveredando pelo caminho da conveniência. Se for a segunda, estamos entendendo o ecumenismo de maneira redutiva, pois este não se faz unilateralmente.[3] Caso concluamos que o problema está numa suposta crise que a música católica atravessa, precisamos refletir seriamente sobre isso, à luz do evangelho, buscando identificar onde ela se originou e quais os meios de solucioná-la.

            Parece-me que, ultimamente, um número considerável de nossas composições tem falado mais de seus autores e de suas crises pessoais do que mesmo de Cristo. Biblicamente, a música deve estar a serviço do louvor e da adoração, não do artista (cf. Sl 149, 1-3; 150, 3-5; Ap 14, 3).[4] Deveria ser, portanto, um meio e não um fim em si mesma. Ademais, se os nossos repertórios musicais não nascerem de uma profunda relação com Deus e do sopro inspirador do Espírito Santo, não passarão de um “címbalo que retine” (I Cor 13, 1).

            O fenômeno ao qual me referi no início suscita ainda outras indagações: encontramo-nos perante uma “catolização” da música evangélica ou “protestanização” da música católica? Ambas as opções, penso eu, colocaria em risco a identidade musical tanto de uma quanto de outra religião, o que não seria interessante para nenhuma das duas.

                       Podemos e devemos estar abertos ao fomento do ecumenismo também na esfera musical? Sem dúvidas. Estabelecer limites, porém, é imprescindível para uma relação salutar e o enriquecimento mútuo. Por razões de estima pelo talento do outro, vigiemos para não desmerecermos aquilo que é nosso.
           

Email do autor: vavasilvaremido@hotmail.com



[1] Disponível em: http://remidosnosenhor.com.br/site/2011/06/14/esse-som-e-livre-mesmo/
[2] Refiro-me ao Adelso Freire, da Banda Giom. As canções evangélicas gravadas por Anjos, Celina e, sobretudo, Adriana, são quase todas de sua autoria.
[3] Ao que me recordo, nunca soube de uma música católica ter sido sequer cantada em um show evangélico, muito menos gravada em CD ou DVD gospel.
[4] Apesar da inexistência de um fundamento bíblico explícito, poderíamos, contudo, acrescentar um terceiro elemento ao qual a música cristã deve servir: a evangelização. 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

"EIS O HOMEM" - Frei Raniero Cantalamessa prega sobre a Paixão de Cristo

Acabamos de ouvir o relato do julgamento de Jesus perante Pilatos. Há nele um momento que nos pede uma atenção especial.
“Pilatos mandou então flagelar Jesus. Os soldados teceram de espinhos uma coroa, puseram-na sobre a sua cabeça e o cobriram com um manto de púrpura. Aproximavam-se dele e diziam: Salve, rei dos judeus! E davam-lhe bofetadas. Pilatos saiu outra vez e disse-lhes: Eis que vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele nenhum motivo de acusação. Apareceu então Jesus, trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse: Ecce homo! Eis o homem!” (Jo 19,1-5).
Entre as muitas pinturas que retratam o Ecce Homo, há uma que sempre me impressionou. É de Jan Mostaert, pintor flamengo do século XVI, e está na National Gallery de Londres. Tentarei descrevê-la. Ela nos ajudará a imprimir melhor na mente o episódio, já que o pintor transcreve fielmente, em cores, os dados do relato evangélico, especialmente do relato de Marcos (Mc 15,16-20).
Jesus tem na cabeça uma coroa de espinhos. Um feixe de arbustos espinhosos que estava no pátio, talvez para fazer fogo, deu aos soldados a ideia dessa cruel zombaria da sua realeza. Da cabeça de Jesus descem gotas de sangue. Sua boca está semiaberta, como que lutando para respirar. Sobre os ombros, sulcados pelos golpes recentes da flagelação, um manto pesado e desgastado, mais próximo da lata que da estopa. Ele tem os pulsos amarrados por uma corda grosseira; em uma das mãos, eles colocaram um pedaço de pau a fazer as vezes de cetro e, na outra, um feixe de varetas, símbolos que ridicularizavam a sua majestade. Jesus não pode mover sequer um dedo; é o homem reduzido à total impotência, o protótipo de todos os algemados da história.
Meditando sobre a Paixão, o filósofo Blaise Pascal escreveu certa vez estas palavras: “Cristo está em agonia até o fim do mundo: não podemos dormir durante este tempo”[1]. Há um sentido em que estas palavras se aplicam à pessoa de Jesus mesmo, ou seja, à cabeça do corpo místico e não apenas aos membros. Não apesar de Ele ter ressuscitado e estar vivo, mas justamente porque Ele ressuscitou e está vivo. Deixemos de lado, no entanto, este significado misterioso demais para nós e falemos do sentido mais claro daquelas palavras. Jesus está em agonia até o fim do mundo em cada homem ou mulher submetidos aos mesmos tormentos. “Vós o fizestes a mim” (Mt 25, 40): Ele não disse esta frase apenas sobre quem acredita nele; ele a disse sobre cada homem e cada mulher famintos, nus, maltratados, presos.
Ao menos por uma vez, não pensemos nos males sociais, coletivos: a fome, a pobreza, a injustiça, a exploração dos fracos. Desses males já se fala muitas vezes, embora nunca o suficiente, e há o risco de se tornarem abstrações. Categorias, não pessoas. Pensemos agora no sofrimento dos indivíduos, das pessoas com nome e identidade concreta; nas torturas decididas a sangue frio e infligidas voluntariamente, neste exato momento, por seres humanos contra outros seres humanos, inclusive crianças.
Quantos “Ecce homo” no mundo! Meu Deus, quantos “Ecce homo”! Quantos prisioneiros na mesma condição de Jesus no pretório de Pilatos: sozinhos, algemados, torturados, à mercê de soldados ásperos e cheios de ódio, que se entregam a todo tipo de crueldade física e psicológica, divertindo-se em ver sofrer. “Não podemos dormir, não podemos deixá-los sós!”.
A exclamação “Ecce homo!” não se aplica somente às vítimas, mas também aos carnífices. Ela quer dizer: eis aqui do que o homem é capaz! Com temor e tremor, digamos ainda: eis do que somos capazes nós, homens! Muito distante da marcha inexorável do Homo sapiens sapiens, o homem que, segundo alguns, nasceria da morte de Deus e tomaria o seu lugar[2].
* * *
Os cristãos não são, certamente, as únicas vítimas da violência homicida que há no mundo, mas não se pode ignorar que, em muitos países, eles são as vítimas marcadas e mais frequentes. Jesus disse um dia aos seus discípulos: “Chegará uma hora em que aqueles que vos matarem julgarão estar honrando a Deus” (Jo 16, 2). Talvez estas palavras nunca tenham achado na história um cumprimento tão pontual quanto hoje.
Um bispo do século III, Dionísio de Alexandria, nos deixou o testemunho de uma Páscoa celebrada pelos cristãos durante a feroz perseguição do imperador romano Décio: “Eles nos exilaram e, sozinhos entre todos, fomos perseguidos e lançados à morte. Mas, ainda assim, celebramos a Páscoa. Todo lugar em que se sofria tornou-se para nós um lugar de celebração da festa: fosse um acampamento, um deserto, um navio, uma pousada, uma prisão. Os mártires perfeitos celebraram a mais esplêndida das festas pascais ao ser admitidos no banquete celeste”[3]. Será assim para muitos cristãos também na Páscoa deste ano, 2015 depois de Cristo.
Houve alguém que teve a coragem de denunciar, como leigo, a indiferença perturbadora das instituições mundiais e da opinião pública em face de tudo isto, lembrando a quais consequências essa indiferença já levou no passado[4]. Corremos todos o risco, tanto instituições quanto pessoas do mundo ocidental, de ser Pilatos que lavam as mãos.
A nós, no entanto, não é permitido fazer qualquer denúncia neste dia. Trairíamos o mistério que estamos celebrando. Jesus morreu gritando: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Esta oração não é simplesmente murmurada; é gritada para ser bem ouvida. Na verdade, não é sequer uma oração, mas uma exigência imperativa, feita com a autoridade de quem é Filho: “Pai, perdoa-os!”. E como Ele mesmo disse que o Pai escuta todas as suas orações (Jo 11,42), devemos acreditar que Ele ouviu também esta última feita na cruz, e que, portanto, aqueles que crucificaram o Cristo foram perdoados por Deus (é claro que não sem antes se arrependerem de alguma forma) e estão com Ele no paraíso, testemunhando para toda a eternidade o ponto até o qual pode chegar o amor de Deus.

Essa ignorância, como tal, estava só nos soldados. Mas a oração de Jesus não se limita a eles. A grandeza divina do seu perdão consiste no fato de que o perdão também é oferecido aos seus inimigos mais ferozes. É para eles que Jesus alega a desculpa da ignorância. Mesmo que eles tenham agido com astúcia e malícia, eles realmente não sabiam o que faziam, não pensavam que estavam crucificando um homem que era de fato o Messias e Filho de Deus! Em vez de acusar os seus adversários, ou de os perdoar confiando ao Pai Celestial o cuidado de vingá-lo, Ele os defende.
Seu exemplo sugere aos discípulos uma generosidade infinita. Perdoar com a sua mesma grandeza de alma não pode envolver simplesmente uma atitude negativa, de renunciar a querer o mal para quem faz o mal; deve traduzir-se, em vez disso, em uma vontade positiva de lhes fazer o bem, mesmo que apenas com uma oração dirigida a Deus em seu favor. “Orai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5, 44). Esse perdão não deve procurar compensação nem sequer na esperança de um castigo divino. Deve ser inspirado por uma caridade que desculpa o próximo, mesmo sem fechar os olhos para a verdade, e que tenta parar os maus para que eles não façam mais mal aos outros nem a si mesmos.
Quereríamos dizer: “Senhor, o que nos pedes é impossível!”, mas Ele nos responderia: “Eu sei. E morri para vos dar o que vos peço. Não vos dei apenas o mandado de perdoar, nem apenas um exemplo heroico de perdão; com a minha morte, eu vos dei a graça que vos torna capazes de perdoar. Eu não deixei ao mundo apenas um ensinamento sobre a misericórdia, como tantos outros também deixaram. Eu sou Deus e, para vós, fiz brotarem da minha morte rios de misericórdia. Deles podeis beber a mãos cheias no Ano Jubilar da Misericórdia que tendes pela frente”.
* * *
Então, indagará alguém, seguir a Cristo é sempre um resignar-se passivamente à derrota e à morte? Pelo contrário! “Tende coragem”, disse Ele aos apóstolos antes da Paixão: “Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Cristo venceu o mundo vencendo o mal do mundo. A vitória definitiva do bem sobre o mal, que se manifestará no fim dos tempos, já aconteceu, de fato e de direito, na cruz de Cristo. “Esta é hora do juízo deste mundo” (Jo 12, 31). Desde aquele dia, o mal é o perdedor: tanto mais perdedor quanto mais parece triunfar. O mundo já foi julgado e condenado em última instância, com sentença inapelável.
Jesus derrotou a violência sem opor a ela uma violência maior ainda, e sim sofrendo-a e revelando toda a sua injustiça e inutilidade. Ele inaugurou um novo tipo de vitória, que Santo Agostinho resumiu em três palavras: “Victor quia victima” – “vencedor porque vítima” [5]. Foi ao “vê-lo morrer assim” que o centurião romano exclamou: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!” (Mc 15, 39). Os outros se perguntavam o que significava o alto brado que Jesus tinha dado ao morrer (Mc 15, 37). O centurião, que era experiente em lutas e lutadores, reconheceu de imediato que aquele era um grito de vitória[6].
O problema da violência nos persegue, nos choca, inventando formas novas e espantosas de crueldade e de barbárie. Nós, cristãos, reagimos horrorizados à ideia de que se possa matar em nome de Deus. Alguém poderia objetar: mas a Bíblia também não está cheia de histórias de violência? Deus mesmo não é chamado de “Senhor dos Exércitos”? Não é atribuída a Ele a ordem de exterminar cidades inteiras? Não é Ele quem decreta, na Lei mosaica, numerosos casos de pena de morte?
Se tivessem dirigido a Jesus, durante a sua vida, esta mesma objeção, Ele certamente teria respondido o que respondeu sobre o divórcio: “Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi assim” (Mt 19,8). Também sobre a violência, “no princípio não foi assim”. O primeiro capítulo do Gênesis mostra um mundo onde a violência não é sequer pensável, nem dos seres humanos entre si, nem entre homens e animais. Nem sequer para vingar a morte de Abel, e assim punir um assassino, é lícito matar (cf. Gn 4, 15).
O genuíno pensamento de Deus é expresso pelo mandamento “Não matarás”, e não pelas exceções abertas na Lei, que são concessões à “dureza do coração” e dos costumes dos homens. A violência, depois do pecado, infelizmente faz parte da vida; e o Antigo Testamento, que reflete a vida e deve servir à vida, procura pelo menos, com a sua legislação e com a própria pena de morte, canalizar e conter a violência para que ela não se degenere em arbítrio pessoal[7].
Paulo fala de uma época caracterizada pela “tolerância” de Deus (Rm 3, 25). Deus tolera a violência como tolera a poligamia, o divórcio e outras coisas, mas educa o povo para um tempo em que o seu plano original possa ser “recapitulado”, como para uma nova criação. Esse tempo chega com Jesus, que, na montanha, proclama: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente; mas eu vos digo: não resistais aos malvados; se alguém vos bater na face direita, oferecei também a outra… Ouvistes o que foi dito: amai o vosso próximo e odiai o vosso inimigo; eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,38-39; 43-44).
O verdadeiro “sermão da montanha” que mudou o mundo, no entanto, não é aquele que Jesus fez um dia sobre uma colina da Galileia, mas aquele que Ele proclama agora, silenciosamente, na cruz. No Calvário, Ele pronuncia um definitivo “não!” à violência, opondo a ela não apenas a não-violência, mas o perdão, a bondade e o amor. Se ainda houver violência, ela já não poderá, sequer remotamente, remontar a Deus e revestir-se da sua autoridade. Fazer isto significa retroceder na ideia de Deus a estágios primitivos e grosseiros, superados pela consciência religiosa e civil da humanidade.
* * *
Os verdadeiros mártires de Cristo não morrem com os punhos cerrados, mas com as mãos juntas. Tivemos tantos exemplos recentes! Foi Ele que, aos 21 cristãos coptas mortos pelo Estado Islâmico na Líbia em 22 de fevereiro, deu a força para morrerem murmurando o Seu nome. Rezemos nós também:
“Senhor Jesus Cristo, oramos pelos nossos irmãos de fé que são perseguidos e por todos os Ecce homo que estão, neste momento, sobre a face da terra, cristãos e não cristãos. Maria, tu, ao pé da cruz, te uniste ao Filho e murmuraste com Ele: “Pai, perdoa-os”. Ajuda-nos a vencer o mal com o bem, não só no grande palco do mundo, mas também na vida cotidiana, dentro da nossa casa. Tu, que, “ao sofrer com teu Filho que morria na cruz, colaboraste de modo tão especial para a obra do Salvador com a obediência, a fé, a esperança e a caridade ardente”[8], inspira nos homens e mulheres da nossa época pensamentos de paz, de misericórdia e de perdão. Que assim seja”.

[1] Blaise Pascal, “O mistério de Jesus” (Pensamentos, nº 553).
[2] F. Nietzsche, A gaia ciência,III, 125.
[3] Dionísio de Alexandria, in Eusébio, História ecl., VII, 22, 4.
[4] Ernesto Galli della Loggia, “L’indifferenza che uccide”, in “Corriere della sera” 28 de julho de 2014, pág. 1.
[5] S.Agostinho, Confissões, X, 43.
[6] Cf. F. Topping “An impossible God”.
[7] Cf R. Girard, Delle cose nascoste sin dalla fondazione del mondo, Adelphi, Milão 19963.
[8] Lumen gentium, nº 61.