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domingo, 27 de novembro de 2011

Poema de Dietrich Bonhoeffer

QUEM SOU?
Dietrich Bonhoeffer[1]

Quem sou?
Frequentemente me dizem que
saí do confinamento de minha cela
tranquilo, alegre e firme
como um senhor de sua mansão de campo.
Quem sou?
Frequentemente me dizem
que costumo falar com os guardiões da prisão confiada,
livre e claramente,como se eu desse as ordens.
Quem sou?
Também me dizem
que superei os dias de infortúnio
orgulhosa e amavelmente, sorrindo,
como quem está habituado a triunfar.
Sou, na verdade, tudo o que os demais dizem de mim?
Ou sou somente o que eu sei de mim mesmo?
Inquieto, ansioso e enfermo,como uma ave enjaulada,
pugnado por respirar, como se me afogasse,
sedento de cores, flores, canto de pássaros,
faminto de palavras bondosas, de amabilidade,
com a expectativa de grandes feitos,
temendo, impotente, pela sorte de amigos distantes,
cansado e vazio de orar, de pensar, de fazer,
exausto e disposto a dizer adeus a tudo.
Quem sou? Esse ou aquele?
Um agora e outro depois?
Ou ambos de uma vez?
Hipócrita perante os demais
e, diante de mim mesmo, um débil acabado?
Ou há, dentro de mim,algo como um exército derrotado
que foge desordenadamente da vitória já alcancada?
Quem sou?
Escarnecem de mim essas solitárias perguntas minhas;
seja o que for,
Tu o sabes, ó Deus: sou Teu!



[1] Teólogo alemão, que morreu por sua fé, em um cárcere, vítima do nazismo.

domingo, 20 de novembro de 2011

Dar tudo porque Cristo tudo deu

Meu Senhor Jesus, quão depressa será pobre aquele que, amando-Vos de todo o coração, não puder suportar ser mais rico do que o seu Bem-Amado! Quão depressa será pobre aquele que, sabendo que tudo o que for feito a um destes pequeninos é a Vós que é feito e que tudo o que o não for também o não será a Vós (Mt 25,40.45), aliviar toda a miséria ao seu alcance! Quão depressa será pobre aquele que receber com fé as palavras que dizem: «Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá o dinheiro aos pobres. Felizes os pobres. Todo aquele que tiver deixado os seus bens por causa do Meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna» (Mt 19,21.29; 5,3; 19,29), e tantas outras como estas!

Deus meu, não me parece que seja possível a todas estas almas, ao ver-Vos pobre, permanecerem ricas por vontade e assim se reverem maiores do que o seu Mestre, o seu Bem-Amado, ou, se depender delas, não quererem ser parecidas convosco em tudo, sobretudo nas Vossas humilhações [...]. Seja como for, não consigo conceber o amor sem a necessidade imperiosa de tornar conformes, semelhantes e, acima de tudo, correspondidas, todas as dores, todas as penas, todas as asperezas da vida. Por mim, meu Deus, não me é possível ser rico e viver desafogadamente dos meus bens quando Vós fostes pobre e vivestes com dificuldades, tirando laboriosamente o sustento duma custosa profissão. Não sei amar assim.

Não convém que o servo seja «maior do que o seu Senhor» (Jo 13,16), nem que a esposa seja rica quando o Esposo é pobre [...]. E é-me impossível compreender o amor sem esta procura de identificação [...], sem esta necessidade de partilha de todas as cruzes.


Comentário ao Evangelho do dia feito por
Beato Charles de Foucauld (1858-1916), eremita e missionário no Saara
Retiro de Nazaré (1897)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

DEUS PODERIA TER SALVADO O HOMEM SEM SACRIFICAR SEU FILHO?


            Deus poderia ter salvado o homem de outro modo? Mais especificamente, sem ter que fazer padecer o seu Filho? Alguns afirmam que um simples ato de vontade do Criador poderia ter salvado o mundo. A rigor, isto é verdade, considerando a onipotência de Deus. Contudo, devo ponderar que essa afirmação é, no mínimo, questionável. Explico o porquê.
            Deus é justiça. Mais que isso. Ele é, por assim dizer, o responsável por manter a ordem que provém da justiça. Deus não pode deixar de ser justo, ferindo esta ordem, pelo que tornaria as coisas sem sentido, uma vez que não há sentido na existência de todas as coisas, estando elas submetidas a uma desordem provinda da injustiça generalizada. Um ato de injustiça de Deus quebraria a ordem cósmica de um modo pleno e definitivo.
            Mas tal ato não seria de misericórdia? A misericórdia não existe dissociada da justiça. Essa é uma falsa misericórdia, provinda da ingenuidade. Obviamente, um ato de bondade pode prevalecer sobre um ato de justiça, porém, desde que este ato de bondade não altere a ordem da justiça. Assim, alguém pode optar por dispensar o pagamento de uma dívida da qual é credor, desde que não faça isso em sua condição de juiz. Se o fizer, estará legitimando a passividade do devedor e tornando normativo o perdão das dívidas.
            Ora, esta é a condição de Deus frente ao pecado humano: a de um juiz. Caso o perdoasse sem mais, tomaria uma atitude injusta, posto que o faria na qualidade de provedor da ordem de justiça, alterando-a e comprometendo-a. Abriria, por exemplo, a possibilidade de que os demônios fossem perdoados, uma vez que, apesar destes terem tomado uma decisão livre e irrevogável, o poder de Deus excederia a essa irrevogabilidade e a essa liberdade. E Deus poderia usar o seu poder desconsiderando a justiça.[1]
            Segundo a justiça, o homem deveria ser condenado por causa do pecado. Em sua misericórdia, Deus se pegou procurando a solução para um enigma: como reparar um erro de proporções infinitas,[2] não ferindo a ordem da justiça e, ao mesmo tempo, libertando o culpado. Foi então, que concebeu e executou um plano único, não podendo haver outro com maior perfeição: o plano da redenção. Quem, se não Deus, poderia ter concebido algo tão certeiro e sublime?
            Deus fez tudo como pensou, e o fez na história humana. A redenção foi cuidadosamente preparada mediante as prefiguras veterotestamentárias e as práticas religiosas da aliança com Israel. No momento certo (cf. Gl 4,4), cumpriu-se. Inicialmente, pela Encarnação do Verbo, que foi o ato mediante o qual Deus se fez homem, sem deixar de ser Deus, criando as condições para que uma pessoa humana fosse capaz de um amor infinito, porquanto esta pessoa também era infinita.
            Mas a Encarnação do Verbo não seria suficiente, pois ela por si só, não cumpre a justiça. Foi necessário o sacrifício, a condenação de Cristo, tornando-se Ele o anátema do Pai (cf. Mt 27,43). Só assim se fez justiça, pois Jesus pagou a dívida da humanidade para com Deus. Na verdade, “era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo” (2 Cor 6, 19). A expressão tão cara a Santo Anselmo e Santo Tomás (“satisfez por nossos pecados”) deve ser entendida antes como uma “satisfação de justiça” e não como um sentimento, um suposto estado emocional do Pai, aplacado em sua ira.
            O plano não só foi cumprido, como também, foi manifestado, visibilizado através da cruz. Tanto a justiça quando a misericórdia (e essas duas são uma só). É por isso que, ainda hoje, a cruz recorda: aos demônios, sua danação final; aos homens, sua salvação. O ato de amor do Filho não foi apenas suficiente, mas superabundante (cf. Rm 5, 15-20). Deus não só resolveu o enigma, como ainda aproveitou para revelar-se de um modo pleno, como ainda não tinha se revelado, e atestou novamente sua prodigalidade, demonstrando que não pode haver parceria entre o amor e a mesquinhez.
            Por fim, a ressurreição selou sua vitória, pois não era possível que ele fosse retido em poder da morte (cf. At 2,24). Devia haver outra maneira de salvar o homem, porém não mais perfeita do que esta. A ordem de justiça, mas também a beleza da redenção, tal como foi operada, atestam que Deus não poderia ter salvado o homem sem sacrificar seu Filho.

Por Ronaldo José de Sousa


[1] Alguém poderia suspeitar de que também não seria justo que todos os homens pagassem pelo pecado dos primeiros pais. Afirmo que sim, uma vez que todos, igualmente sem concorrer para isto, gozaria dos benefícios de sua fidelidade.
[2] O pecado contra Deus tem proporções infinitas por causa da infinita dignidade de quem foi ofendido.