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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

É PELO NOME DE JESUS QUE SEREIS SALVOS

Por Ronaldo José de Sousa[1]

“Chegaram do outro lado do mar, à região dos gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, caminhou ao seu encontro, vindo dos túmulos, um homem possuído por um espírito impuro: habitava no meio das tumbas e ninguém podia dominá-lo, nem mesmo com correntes. Muitas vezes já o haviam prendido com grilhões e algemas, mas ele arrebentava os grilhões e estraçalhava as correntes, e ninguém conseguia subjugá-lo. E, sem descanso, noite e dia, perambulava pelas tumbas e pelas montanhas, dando gritos e ferindo-se com pedra. Ao ver Jesus, de longe, correu e prostrou-se diante dEle, clamando em alta voz: ‘Que queres de mim, Jesus, Filho de Deus altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!’. Com efeito, Jesus lhe disse: ‘Sai deste homem, espírito impuro!’. E perguntando-lhe: ‘Qual é o teu nome?’. Respondeu: ‘Legião é o meu nome, porque, somos muitos’. E rogava-lhe insistentemente que não os mandasse para fora daquela região. Ora, havia ali, pastando na montanha, uma grande manada de porcos. Rogava-lhe, então, dizendo: ‘Manda-nos para os porcos, para que entremos neles’. Ele o permitiu. E os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos e a manada — cerca de dois mil — se arrojou no mar, precipício abaixo, e eles se afogaram no mar. Os que os apascentavam fugiram e contaram o fato na cidade e nos campos. E correram a ver o que havia acontecido.   Foram até Jesus e viram o endemoninhado sentado, vestido e em são juízo, aquele mesmo que tivera a Legião. E ficaram com medo. As testemunhas contaram-lhes o que acontecera com o endemoninhado e o que houve com os porcos. Começaram então a rogar-lhe que se afastasse do seu território. Quando entrou no barco, aquele que fora endemoninhado rogou-lhe que o deixasse ficar com Ele. Ele não deixou, e disse-lhe: ‘Vai para a tua casa e para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o Senhor na sua misericórdia’. Então partiu e começou a proclamar na Decápole o quanto Jesus fizera por ele. E todos ficaram espantados”.
(Mc 5, 1-20)

Narrado por três evangelistas, esse episódio foi contado por Marcos com mais vivacidade e maior número de detalhes. Nele, vê-se Jesus acompanhado pelos discípulos cumprindo a sua missão de anunciar o Reino de Deus. Ao atravessarem o Mar da Galiléia, eles encontraram um homem possuído por um demônio a respeito do qual o evangelho dá algumas características. A primeira delas é que se chamava “Legião”.
            Curioso que a expressão utilizada seja “Legião é o meu nome”, tornando difícil compreender quantos demônios realmente possuía o corpo daquele rapaz.  Seria apenas um, mas com poder equivalente ao de seis mil?[2] Ou, quem sabe, dois mil[3] demônios controlados por um mais poderoso? Talvez vários espíritos maus unidos com uma única finalidade. Não se sabe ao certo. O fato é que quem estava ali era tão forte que ninguém conseguia expulsar.
            Marcos oferece outra característica, quiçá a mais importante: tratava-se de um espírito impuro. Os demônios progridem em vícios. De certo modo, eles se especializam. Este era especialista em impurezas, pois vivia em território pagão, habitava o cemitério e, quando percebeu que não poderia resistir à conjuração de Jesus, pediu para entrar em porcos (essas coisas são consideradas impuras pela tradição judaica).
O que esse qualificativo significa? No judaísmo, quem praticava essas coisas não podia se aproximar de Deus. Portanto, esse tipo de demônio é especialista em induzir as pessoas a se afastarem de Deus mediante a prática de impurezas. Existem muitos deles atuando nos dias de hoje. Não há muitas possessões, porque Deus não permite. Mas muita gente cede à tentação, que é, na verdade, não uma força externa ao indivíduo, abstrata e horripilante, mas algo em forma de idéias que se confundem com os pensamentos e que, quando se transforma em convicções, torna-se dificílima de ser renunciada, dado à semelhança que tem com aquilo que a pessoa mesma concebe e que, portanto, não vê sentido em largar.
Os demônios impuros introduzem espécies inteligíveis nas mentes das pessoas, causando confusão de idéias a respeito de Deus e atraindo-as para o sincretismo ou a bricolagem religiosa, ou mesmo para a desordem artística e estética. Sintoma disso são as letras e coreografias sensuais dos “hits” musicais atuais e os estranhos gostos, especialmente da parte dos jovens, por roupas e acessórios que enleia a noção de beleza.
Mas esses espíritos atraem, sobretudo, para a luxúria.[4] A ênfase dos pregadores cristãos nos pecados relacionados à sexualidade, às vezes parece até uma implicância. Não duvido que alguns estejam presos a uma concepção excessivamente escrupulosa nessa matéria, mas o realce histórico não é sem razão. A sexualidade é uma dimensão que, se desestabilizada, causa grande desarmonia, porque constitutiva da identidade da pessoa. Os pecados de luxúria afetam o equilíbrio e a unicidade do ser humano, prejudicando principalmente a sua “capacidade de relacionamento”.
A sexualidade é uma espécie de “porta” mediante a qual os demônios tentam conduzir a pessoa a sucessivas faltas que, acumuladas, terminam por comprometer a sua ordem interior, uma vez que algo do seu núcleo identitário fundamental foi tumultuado, a saber: o ser de homem ou de mulher. São Paulo alerta em 1 Cor 6, 18: “Fugi da fornicação. Qualquer outro pecado que o homem cometa é fora do corpo; mas o impuro peca contra o seu próprio corpo”. Entenda-se: contra si mesmo, profundamente.
De fato, a experiência com o acompanhamento demonstra que é bem mais complicado, por assim dizer, consertar, na interioridade das pessoas, os problemas causados pelos pecados de luxúria. Isso ocorre pelo fato de que, nesses casos, a afetação nos dinamismos psíquicos é muito maior, dificultando a reordenação da “interioridade”. A sexualidade não se “localiza” na periferia da pessoa, como estaria, por exemplo, a sua consciência moral a respeito das virtudes da honestidade ou da bondade. Agindo agressivamente com alguém ou assumindo uma atitude desonesta, ao arrepender-se, o indivíduo se recomporá mais facilmente apenas pela compensação objetiva de seu erro.
Os pecados sexuais fragilizam a vontade de buscar sentido, pois assanham a vontade de prazer. Quanto mais praticar impurezas, mais o homem tenderá ao egoísmo, pois confundirá suas taras com “aquilo que é”. Não verá sentido em renunciá-las e, sem escrúpulo algum, preferirá satisfazer às suas inclinações obscenas a doar-se a si, ainda que seja para pessoas pelas quais sente afeto. Com efeito, uma pessoa desequilibrada sexualmente, mais facilmente age com agressividade para com um filho pequeno que lhe atrapalha uma relação sexual ou trata a esposa como se ela fosse um objeto de desejo. Esses atos, por sua vez, causam estragos igualmente grandes nos que são suas vítimas.
Portanto, não é por preconceito ou puritanismo que os pregadores sóbrios enfatizam o perigo das impurezas sexuais. Tampouco é por ignorância que alertam para a ação dos demônios nessa área. Incapaz de obrigar quem quer que seja a voltar-se contra Deus, o Diabo tenta fazer com que a pessoa mesma renuncie a sua identidade. Ora, o ser humano tem pelo menos dois elementos constitutivos da identidade: a filiação divina e a categoria sexual. Esses elementos foram dados por Deus e permanecem para a eternidade. Renunciar a identidade de filho é a maneira concreta de o homem dizer “não” a Deus, implicando isso num “não” a si próprio. É por isso que quem renuncia voluntariamente à sua identidade sexual, na verdade, deu um grande passo para a perda de si, porquanto abriu mão de uma parte fundamental de sua condição ontológica.
A consequência da impureza é a escravidão. Esse endemoninhado do evangelho é um protótipo. Note-se que o homem tem sua personalidade dividida, suas emoções estão confusas (ele grita e se fere) e seus relacionamentos estão comprometidos. Quantas pessoas estão assim hoje em dia! Não vivem, perambulam. Não têm descanso. Ferem-se si mesmas e às pessoas que ama. A impureza escraviza o homem, fazendo com que ele viva subjugado pelos desejos e paixões da carne.
Mas a boa notícia é que existe um redentor. A entrada de Jesus em território pagão demonstra que ele não se importa muito com a impureza “ritual” e sim com o estrago que o afastamento de Deus provoca. Por isso, Jesus rompe os limites entre o puro e o impuro, realizando, nesse episódio em Gadara, aquilo que Paulo iria explicar: “O que era impossível à lei, Deus o fez. Enviando, por causa do pecado, o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado, condenou o pecado na carne” (Rm 8, 1-3 – grifo meu).
            A impureza deve ser vencida “na carne”. Alguns cristãos preferiam não ter corpo e fazem de tudo para eximir-se dele e de suas tendências. Ora, a redenção não poderia deixar de atingir uma dimensão tão importante da pessoa humana como a sexualidade. A encarnação do Verbo ofereceu a possibilidade de o ser humano ordenar seus impulsos, não negando seu corpo, mas integrando a esfera erótica ao seu centro de valores. Como Jesus fez. E a harmonia sexual terá consequências maravilhosas nas outras dimensões do indivíduo.
Assim como a tentação não é uma pressão abstrata fora da pessoa, muito menos a redenção é algo poético ou “em tese”. A salvação resultou numa força que atua poderosamente na pessoa e em seu favor, capacitando-a para a liberdade frente ao pecado, pois “ele nos perdoou todos os pecados, cancelando o documento escrito contra nós, cujas prescrições nos condenavam. Aboliu-o definitivamente, ao encravá-lo na cruz. Espoliou os principados e potestades, triunfando deles pela cruz” (Cl 2, 13b-15).
Com o exorcismo em Gadara, Jesus atestou que as pessoas não precisam esperar morrer para experimentar a sua libertação. A salvação é um evento de hoje. Existe um poder que foi dado “em nome de Jesus”. Aliás, da doença e do sofrimento outros podem livrar. Mas do pecado, somente Jesus pode libertar: “É ele a pedra rejeitada por vós, os construtores, mas que se tornou a pedra angular. Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4, 11-12).
O “nome” de Jesus é a sua força, mas é, sobretudo, a sua identidade. Isso significa que, ao concentrar-se num projeto positivo de vida e santidade, o homem remido é capaz de emancipar-se da escravidão do pecado, uma vez que, configurando-se a Cristo, “seremos uma coisa só com ele, (...) sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado” (Rm 6, 5-6 – grifo meu)
O homem salvo não pertence mais ao pecado, pois foi comprado pelo preço do sangue de Cristo. Ele pertence a Deus, portanto, não está submisso ao erro. O homem remido está em condições de se posicionar sempre que for tentado pelos espíritos impuros. A não ser que não tenha experimentado a salvação de modo pessoal. Seria como um herdeiro menor de idade, que não sabe os bens que possui. São Paulo diz que um homem assim em nada se distingue de um escravo, conquanto seja filho, pois embora dono, não tem a posse efetiva do que lhe pertence (cf. Gl 4, 1-2).
            Fiz esta constatação em minha vida: o poder da salvação é maior do que a força do pecado em mim. Por isso, os meus pecados, em última análise, resultam de atos de vontade, pois sinto que não sou obrigado a fazer o que não quero. Por causa disso, tenho para mim que a sensação psicológica que muitos sentem, de que as paixões da carne, especialmente aquelas relacionadas à dimensão erótica, são mais fortes no homem do que as suas convicções religiosas, isso é fruto de uma espécie de ilusão mental causada pelos demônios impuros. Eles conseguem assustar o crente, fazendo alarido e exibindo um poder que não têm.
Note-se o que aconteceu nesse episódio narrado por São Marcos. Quando avistou Jesus, o demônio impuro não correu com medo e sim pra cima dele. Não é curioso? E não só isso, mas o espírito quer expulsar Jesus antes que este o exorcize. A sua intenção fica evidente quando ele chama Jesus pelo nome, que é um modo, segundo os exorcismos antigos, de obter o domínio sobre o outro. O demônio chega a usar o nome de Deus, imitando a fórmula cristã. E argumenta: já somos condenados, por que não nos deixa agir enquanto não acontece o juízo?
É assim que os demônios tentam manter os homens cativos até o último minuto antes da consumação dos tempos: partindo pra cima deles e os assustando. É por isso que muitas pessoas têm a sensação que a sua inclinação ao pecado é maior do que a sua experiência de Deus.[5] Jesus simplesmente ignorou o alarido do demônio, e disse: “Sai deste homem, espírito impuro”. E com isso Ele demonstrou quem é que mandava. É o que deve fazer a pessoa remida em situações críticas nas quais se vê na iminência de pecar: ordenar em nome de Jesus que essa pretensa força seja desvelada. Ela verá que a pressão psicológica ao erro dissipar-se-á como fumaça.
É maravilhoso contemplar o resultado da redenção. Quando encontro, no evangelho, aquele homem “sentado, vestido e em são juízo; aquele mesmo que tivera a Legião”, sinto-me como se estivesse contemplando a mim mesmo após a experiência da salvação. O contraste é muito grande entre a situação anterior e a condição posterior do sujeito. Ele voltou à sua pureza original, como se tivesse recebido uma veste branca, tão alva que nenhuma lavadeira poderia deixá-la igual (cf. Mc 9, 3). Quanto às suas impurezas, ele as deixou para os porcos.
O desfecho desse episódio é ainda mais belo. O ex-endemoninhado quis acompanhar Jesus, mas este não deixou. Alguns comentadores consideram que Jesus negou-lhe o seguimento. Eu acho que não. Pois o seguimento a Jesus consiste em três momentos, descritos nas seguintes proposições: a) Vinde e vede (cf. Jo 1, 39), que é o convite para conhecer a pessoa de Jesus; b) Vem segue-me (cf. Mt 4, 19), que traduz o aprendizado que deve ser feito aos pés do Mestre; e c) Ide e evangelizai (cf. Mc 16, 15), o mandato de cumprir a missão de anunciar a salvação.
Aquele homem, de forma excepcionalmente rápida, já havia passado pelas duas primeiras etapas, pois teve um encontro pessoal com Jesus e, em seguida, sentou-se aos seus pés, ou seja, fez o seu discipulado. Este poderia ser de curta duração, pois ele haveria de pregar uma única coisa: “o que fez por ti o Senhor na sua misericórdia”. Por causa disso, estava em condições de ouvir do Senhor: “Vai, anuncia!”. Ele partiu e falou não somente aos seus, mas em dez cidades da região pagã. E continuou causando espanto nas pessoas, mas desta vez não pelas suas peripécias imundas e sim pela pureza que exalava de sua nova vida.


*Texto cedido com as devidas licenças pelo autor.


[1] Formador geral da Comunidade Remidos no Senhor.
[2] “Seis mil” era a quantidade de soldados de uma “legião” do exército romano.
[3] Número de porcos que se precipitou no mar.
[4] Chego a essa conclusão, a despeito do fato de que, no evangelho, o possesso geraseno não se demonstra lascivo. Entretanto, a luxúria é a maior impureza de hoje.
[5] Aqui, considero as duas realidades (pecado e experiência de Deus) em si mesmas, a despeito das circunstâncias concretas que determinam a intensidade com que cada pessoa vive as duas coisas. Não ignoro que certas situações sejam mais difíceis do que outras de serem superadas, inclusive por causa de patologias do psiquismo ou do corpo; entretanto, estou convencido de que o poder da salvação, como evento de hoje, é suficiente para conduzir o homem à superação do erro.