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quinta-feira, 24 de março de 2016

TRANSFIGURAR-SE OU DESFIGURAR-SE?


            
Francivaldo da S. Sousa (Vavá Silva)
Comunidade Remidos no Senhor




            Entre o Tabor e o Gólgota existem profundas semelhanças, ao mesmo tempo em que há diferenças abissais. No primeiro se deu a Transfiguração, enquanto que no segundo, a desfiguração de Cristo. É preciso olhar calmamente para estes dois acontecimentos, procurando captar a mensagem que ainda hoje eles têm a nos dizer. No que concerne aos termos “transfiguração” e “desfiguração”, encontraremos mais elementos comuns do que, provavelmente, imaginamos. Com efeito, tanto um quanto o outro possuem basicamente os mesmos significados: alterar a figura ou aspecto de; mudar a feição. Assim sendo, uma abordagem meramente conceitual ou etimológica não nos esclareceria suficientemente o sentido subjacente aos dois adjetivos e, por conseguinte, sua diferenciação. Por esta razão, para não incorrermos no risco de ficarmos à margem do mistério contido nesses dois episódios da vida de Cristo, é necessário, portanto, uma análise de cunho teológico, e é isto que nos ariscaremos a fazer, ainda que de maneira sucinta. 

            Se Jesus mudou de fisionomia em ambos os momentos, é necessário indagar sobre que aspecto, então, o Cristo assumiu no Calvário e no monte Tabor. Quanto a este último, nos deparamos, ao que parece, com um progressivo interesse dos evangelistas sinóticos por esse detalhe. Marcos limita-se a dizer que Jesus “foi transfigurado diante deles”, ou seja, dos discípulos, sem nada referir quanto ao aspecto do seu rosto, senão à brancura das suas vestes (cf. 9,2b-3). Lucas vai um pouco mais longe, afirmando que “o aspecto de seu rosto se alterou” (9, 29), embora não nos esclareça no que consistiu tal alteração.

            É somente Mateus quem nos dá uma definição acerca da natureza desta mudança no semblante de Cristo. Depois de afirmar, como Lucas, que Jesus “foi transfigurado diante deles”, o mesmo evangelista acrescenta: “Seu rosto resplandeceu como o sol” (17,2), o que nos remete à mesma experiência de Moisés, quando, depois de falar com Deus, desce do monte com o rosto resplandecente (cf. Ex 34,29).

            Durante a Transfiguração de Cristo, ao mesmo tempo em que era reiterada a sua filiação divina (cf. Mt 17, 5b), o seu rosto brilhava, irradiando a glória de Deus. Disso se depreende o seguinte: o homem que se aproxima de Deus, de sua presença, experimenta, por assim dizer, uma verdadeira metamorfose, não apenas de caráter interior, subjetivo, como também externo, visual. Destarte, o homem em quem Deus se compraz (cf. Mt 17,5) expressa o brilho da glória divina não apenas em suas palavras e ações, mas também em seu rosto. Foi assim com Cristo, foi assim com Moisés, será também conosco.

Assim posto, passemos ao segundo termo, “desfiguração”. Na hora da Paixão, aquela mesma face que resplandeceu como o sol, muda novamente de fisionomia. Mas desta vez o efeito é contrário. Penso não haver descrição mais emblemática deste momento da vida de Cristo do que a de Isaías. O profeta veterotestamentário descreve-o da seguinte maneira: Ele “não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, como pessoa de quem todos escondem o rosto” (53, 2b. 3a). Mas qual foi a causa de tamanha mudança? O que tornou horripilante a face do mais belo dos filhos dos homens? (cf. Sl 45/44,3). “Eram os nossos sofrimentos que ele levava sobre si”; Ele foi “esmagado por causa das nossas iniquidades” (Is 53,4a.5a), responde-nos, categoricamente, o mesmo profeta. 

            E aqui chegamos a uma plausível conclusão: foi o pecado quem desfigurou o rosto de Cristo. Ou, para ser mais preciso, o meu, o teu pecado, pois este não existiria se não houvesse quem o praticasse. E assim como fez com Cristo, fá-lo também com todo homem que o comete. Aliás, a medida da desfiguração está ligada, ao que tudo indica, ao número e à gravidade do pecado. Talvez por isso a aparência de Jesus tenha abrigado tanta fealdade, considerando que Ele assumiu sobre si todos os pecados, quantitativa e qualitativamente falando. 

            A maldade produz também no ser humano uma mudança de aspecto, mas em sentido inverso. Enquanto que a proximidade de Deus torna o semblante do homem resplandecente, irradiante, a cercania do mal o deixa desfigurado, por vezes irreconhecível, em última análise, abatido, como Caim (cf. Gn 4,6).

            O Tabor e o Gólgota, portanto, vistos sob esta perspectiva, são protótipos de duas possibilidades existentes para o homem: transfigurar-se ou desfigurar-se. Contudo, qualquer que seja a experiência que ele vier a fazer, esta jamais ficará oculta, pois se refletirá também em seu rosto, atraindo ou repelindo os olhares de outros.


Email do autor: vavasilvaremido@hotmail.com
Campina Grande-PB